Edgard de Assis Carvalho
Adentrar nas cavernas do homem, nos insondáveis e inesperados caminhos da alma parece ter sido a energia que impulsionou o pensamento de Edgar Morin a incursionar pelos labirintos da complexidade, um trabalho das e sobre as contradições sociais, culturais, políticas, subjetivas que caracterizam o mundo e a vida. Lembremos, de antemão que "[...] em meados do século XIX, a humanidade levou um choque. Um cientísta inglês, geólogo e naturalista, ameaçou nosso lugar no pedestal dos seres vivos. Charles Darwin colocou-nos na incômoda companhia de todos os outros animais. Afirmou que todos somos frutos de uma mesma evolução biológica, assemelhando-nos a nossos parentes primatas. (Guerriero, 2008). No século XX fora a vez de Sigmund Freud provocar uma mudança na noção de 'pessoa', acrescentando à dimensão racional uma ligação profunda com forças irracionais, o inconsciente. Freud (1856-1939) desmistificou - com categoria - a autonomia da razão, revelando a medida em que o homem é levado por seu[s] instinto[s], pelo impulso erótico e por seu medo da morte. (PADILHA, 2006) Antes dele, o filósofo Arthur Schopenhauer já havia indicado que o ser é guiado não pela razão, mas pela vontade, descrita como uma força 'cega e irracional' que o anima. E, já próximo do século XXI, o pensador francês Edgar Morin propõe que o humano seja pensado além de sua dimensão racional, mas também em termos afetivos, emocionais, sensíveis, mesmo loucos - ao lado do Homo sapiens aparece o Homo demens. Trata-se de um movimento dialógico, hologramático e recursivo empreendido sobre o sistema-mundo que permite entrever o movimento das partes sobre o todo e do todo sobre as partes.
Há ideias nucleares em toda a obra. A mais central é a da unidualidade do homem, um ser físico e metafísico, natural e meta-natural, cultural e metacultural que se estabeleceu no cosmo há cerca de 130 mil anos e que possibilitou a um pequeno bípede, com um cérebro muito assemelhado ao de um chimpanzé, criar uma cognição cultural que o afastou da ordem estritamente biológica, caracterizada pela universalidade dos instintos. “Surgiu bem cedo o paradigma de conquista no processo de hominização. Saiu da África de onde irrompeu como “homo erectus”, há sete milhões de anos, pôs-se a conquistar o espaço, começando pela Eurásia, passando pela Ásia, América e terminando pela Oceania. Com o crescimento de ser crânio, evoluiu para “homo habilis”, inventando, por volta de 2,4 milhões de ano atrás, o instrumento que lhe permitiu alargar ainda mais sua capacidade de conquista. [...] Praticamente tudo está sob o signo de conquista. Conquistar a Terra inteira, os oceanos, as montanhas mais inacessíveis e os recantos mais inóspitos.” (BOFF apud LORENZO, 2003). No tempo, essa singularidade acabou por fazer com que a cultura fosse entendida como algo apartado da natureza, ainda que mediações, como a proibição do incesto, o trabalho, a linguagem, procurassem estabelecer a passagem das compulsões biológicas às diversidades criativas propiciadas pelo modelo cultural universal.
Entender o homem como um vivente cosmo-psico-bio-antropossocial implica devolvê-lo ao império da natureza, sem retirá-lo da república da cultura, descentrá-lo de sua superioridade, para reinseri-lo na diáspora cósmica universal.
Por isso, sua autonomia de ser-sujeito deve ser dissecada nos fundamentos da physís e do bios. Falar em sujeito autônomo implica reconhecer sua auto-organizarão, produto da própria organização biopsíquica. Implica, igualmente, definir o homem como um ser totalmente biológico e totalmente cultural. Diante dessa dupla articulação, é forçoso reconhecer que o Sapiens-demens é capaz de edificar noologias que circundam a vida das ideias, do espírito e da própria sociedade. Mesmo assim, a animalidade continua a ser a marca fundamental de qualquer indivíduo vivo, seja ele uma bactéria, um rinoceronte, uma ameba, ou um Homo Sapiens Sapiens. Qualquer indivíduo é sujeito na medida em que faz referência a si, e a não-si, reorganiza o ecossistema, produz autopoiesis, num movimento organizatório recursivo em que causas e efeitos interagem mutuamente, impulsionando o sistema para outras direções. Essa auto-eco-organização do sistema vivo nutre-se de acasos, tensões, contradições, erros, que o reordenam de modo mais complexo, como se a relação ordem-desordem-reorganização, cercada de antagonismos, complementaridades e concorrências estabelecesse uma dispersão em espiral na configuração do todo.
Embora a formulação dos pressupostos da epistemologia complexa só viesse a se sistematizar no pensamento edgar moriniano a partir dos anos 1960, eles já se encontram cimentados nos trabalhos da década anterior, com as desavenças da morte, a magia do cinema, as epifanias do star-system, que põem a nua desordem sapitental originária. Nossas personalidades não vivem nunca numa democracia plena. Submetem-se a forças tirânicas incontidas, a pulsões desenfreadas, que lutam por se tornar dominantes e atuantes, para caotizarem o ser-sujeito ou para imprimir-lhe novas reorganizações. Nesse equilíbrio/desequilíbrio entre ordem/desordem é que se tecem todas as projeções-identificações que constituem o mundo, a natureza e a matéria, uma rede na qual o real-em-si não dá mais conta da realidade, e isso porque real/virtual, real/mágico, real/imaginário impregam a totalidade das relações bioculturais.
"A ideia que se possa definir homo, dando-lhe a qualidade de sapiens, isto é, de um ser razoável e sábio, é uma ideia pouco razoável e pouco sábia. Homo é também demens: manifesta uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; traz em si uma fonte permanente de delírio; crê na virtude de sacrifícios sangrentos; dá corpo, existência, poder a mitos e deuses da sua imaginação. Há no ser humano um salão permanente de Ubris, a desmesura dos Gregos. A loucura humana é fonte de ódio, crueldade, barbárie, cegueira. Mas sem as desordens da afetividade e as irrupções do imaginário, sem a loucura do impossível, não existiria entusiasmo, criação, invenção, amor, poesia. Do mesmo modo, o ser humano é um animal não só insuficiente em razão mas também dotado de sem-razão. Todavia, temos necessidade de controlar o Homo Demens para exercer um pensamento racional, argumentado, crítico, complexo. Temos necessidade de inibir, em nós, o que demens tem de mortífero, mesquinho, imbecil, perverso, erótico, transgressor. Temos necessidade de sabedoria, que nos pede prudência, temperança, cortesia, desprendimento. Prudência, sim; mas não será a prudência a esterilizar as nossas vidas ao evitar o risco a todo o preço? Temperança, sim, mas será necessário evitar a experiência da «consumação» e do êxtase? Desprendimento, sim, mas será necessário renunciar aos laços da amizade e do amor?
O mundo em que vivemos é, talvez, um mundo de aparências, a espuma de uma realidade mais profunda que escapa ao tempo, ao espaço, aos nossos sentidos e ao nosso entendimento. Mas o nosso mundo da separação, da dispersão, da finitude, é também o da atração, do encontro, da exaltação. Estamos completamente imersos neste mundo que é o dos nossos sofrimentos, das nossas felicidades e dos nossos amores, das nossas ausências, das nossas carências. Não sentir é evitar o sofrimento mas também o regozijo. Quanto mais aptos estamos para a felicidade mais aptos estamos para a infelicidade. O Tao-tö-Kung diz precisamente: «a infelicidade caminha de braço dado com a felicidade, a felicidade deita-se aos pés da infelicidade.»
Estamos condenados ao paradoxo de conservar em nós, simultaneamente, a consciência da vacuidade do nosso mundo e a da plenitude que nos pode trazer a vida, quando quiser ou puder. Se a sabedoria nos pede para nos desprendermos do mundo da vida, será ela verdadeiramente sábia? Se aspiramos à plenitude do amor, seremos nós verdadeiramente loucos?
A partir dos anos 1970, a antropologia fundamental de Edgar Morin passará a ter contornos mais claros, no sentido de modelizar a complexidade organizacional do fenômeno humano. Se algum fundamento deve ser buscado nesse macroobjetivo, ele deve estar situado numa profunda insatisfação com o conhecimento disjuntor, produto do grande paradigma do Ocidente, simplificatório, que, além de dualizar razão/imaginação, sujeito/objeto, liberdade/determinismo, sensível/inteligível, pensamento selvagem/pensamento domesticado, separa, hierarquiza, distingue, degenera o saber numa concepção mutilante. Esse paradigma, uma espécie de cânone, mindscape, constituído por princípios ocultos que comandam a ciência e a própria subjetividade, tornou-se hegemônico, determinista, hiperespecializando os diversos campos cognitivos em compartimentos não-comunicantes. Muitas vezes já foi reiterado o significado etimológico da palavra complexo como aquilo que se tece em conjunto, que reassocia o que está dissociado, que comunica o que está incomunicável. Essa complexidade não é algo novo, identificado com o nihilismo, irracionalidade, pós-modernidade ou até com auto-ajuda, qualificativo que detratores e ressentidos se esmeram em murmurar nos frios corredores da academia. Se a ideia adorniana de que a totalidade é a não verdade é recorrente na totalidade da obra, o desafio parece sinalizar a necessidade de civilizar as ideias, para que seja possível reorganizar todo o processo de conhecimento, dar novo sentido à vida, perceber que sociedade, cultura, cerebralização são aspectos de um mesmo processo de auto-organização complexificador. Mais que isso, as epifanias imaginárias e as desavenças da subjetividade não são meros epifenômenos, mas elementos constitutivos de um processo sócio-histórico que explicita, desde sempre, a unidualidade do Sapiens-demens. Caminhando pelas margens da vida e do conhecimento, fiel à concepcão sintética de vida, elaborada desde a juventude, Edgar Morin exibe suas partes malditas (desordem) e benditas (ordem), sua unidualidade, num esforço de dialogizar sua própria singularidade/universalidade, traduzindo-a num panteão transdisciplinar de ideias que impõem uma reforma do e para o pensamento. Como um bionauta, navegador empedernido da vida, era preciso meditar, refletir e muito sobre a physis, a biocosmologia, o acaso, a biopolítica, o cérebro, numa tentativa de compreender a natureza da natureza, a vida da vida, o conhecimento do conhecimento, as ideias e as identidades, títulos dos cinco volumes publicados de O Método. Se alguém procurar nesses cinco livros um receituário linear de procedimentos e técnicas de pesquisa, pode afastar-se de imediato da leitura. La Metode é uma viagem transversal através de blocos de saber, de metapontos de vista sobre os sistemas vivos, de religações cognitivas, éticas e estéticas que permitem equacionar uma política civilizacional para o planeta como um todo.
Resta saber se essa regeneração ser á efetivada a ponto de colocar um ponto final na idade de ferro planetá-ria. Em 1994, Edgar nos convocava a assumir Sísifo como guia imaginário para nossas ações. Como se sabe, Sísifo foi condenado por Zeus aos Infernos, tendo como castigo rolar um rochedo até o alto de uma montanha, de onde a pedra sempre voltava a cair, em virtude de seu próprio peso. Essa tarefa que nunca dava descanso ao herói, nem lhe permitia fugir de seu vaticínio, deve ser a tarefa de todos aqueles que ainda acreditam que o caleidoscópio de suas vidas e suas ideias vale para alguma coisa. Nos idos de 1995, em uma de suas peregrinações planetárias, foi ele a Sarajevo, cidade onde sérvios bósnios, muçulmanos e croatas se defrontavam pelo controle diabólico de um território que, a rigor, pertencia a todos eles. Na Universidade sitiada pronunciou um discurso em que enfatizava que os atentados à cidade representavam uma agressão à alma do mundo e à pretendida reunificação européia. Lá foi reiterado que a idéia de nação é sempre matripatriótica; lá foi demonstrado que a fragmentação da Europa pós-comunista em conjuntos poliétnicos rivais representa um retrocesso à fraternização planetária; lá foi enfatizado que o destino europeu se encontra preso a uma luta titânica entre forças dissociativas e de ruptura e forças associativas, solidárias e confederadas. Essa luta não se restringe, porém, apenas a um local. Ela atravessa a rede planetária em seu conjunto, como que dominada pela dialogia da pulsão da vida e da pulsão da morte. Ao intitular a homenagem aos 80 anos de Edgar Morin, um humanista planetário, a Unesco soube reconhecer e atualizar o adágio de Antônio Machado que acomete a todos aqueles que se sensibilizam com as infindáveis religações que os saberes culturais ainda terão que realizar: "Caminhante não há caminho, pois o caminho se faz ao andar".
Edgard de Assis Carvalho
GUERRIERO, Silas, in Antropos e Psique - AS ORIGENS DO ANTROPOS, 8ª ed., Olho D’água, 2008.
Fotos de Eduardo Towers Veytia by FlickrR
http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/55/artigo209051-3.asp
http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/55/artigo209051-3.asp
PADILHA, Tarcísio. Conferência proferida no Ciclo “Razão e Espiritualidade” da Academia Brasileira de Letras, em 29 de agosto de 2006.
, professor do Departamento de Antropologia da PUC-SP.
Fonte: MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 167-170, DEZ. 2002
Parabéns pelo Blog!!
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